BACURAU: A antropofagia cinematográfica de Mendonça Filho e Dornelles
- Carol Santoian
- 12 de set. de 2019
- 3 min de leitura

"Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question."
Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade
Não há nada mais excitante para uma fã de filmes de terror (como eu) do que ir ao cinema assistir a um filme brasileiro do gênero.
Isso era o que eu tinha em mente ao chegar para a sessão (lotada) de Bacurau. O pouco que eu sabia vinha do trailer: uma cidadezinha do interior que é retirada do mapa, mortes, sangue, caixões, falta d'água, um futuro distópico, Sônia Braga e um prêmio em Cannes. De fato, tudo isso está no filme, mas são apenas partes do quebra-cabeça dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Bacurau não é só terror - é também ficção científica, faroeste, drama, fantasia e gore. Mas, sobretudo, é Brasil. É a história de resistência de um povo - uma resistência que não é somente armada, mas feita a partir da memória. Não é à toa que na cidade fictícia criada pelos diretores o museu tenha muito mais importância que qualquer igreja. O povo de Bacurau sabe de sua história e isso se torna sua maior arma dentro da trama.
Mendonça Filho e Dornelles conseguem ir a fundo na realidade brasileira. O filme não se prende a um único protagonista, mas aposta na complexidade humana de todos os seus personagens. Não há vilões ou heróis, cada morador da cidade tem suas múltiplas facetas e é isso que torna o filme tão interessante e diverso. Afinal, quem mora em Bacurau é gente, né?

E, apesar da raiz brasileiríssima, Bacurau consegue brincar com os gêneros bebendo da fonte de vários filmes estrangeiros, em uma espécie de manifesto antropofágico. Temos uma referência clara de Star Wars desde a abertura em satélite, passando pelos créditos e presente até nas transições. Há também uma forte influência dos faroestes spaghettis italianos de Sergio Leone, de John Carpenter e seus sintetizadores, de Mad Max e até George Romero. Tudo isso com personagens tipicamente brasileiros, com questões muito caras ao país, como a política, a questão armamentista sob influência americana e o colonialismo. Ou seja, não se trata aqui de negar a influência de outras culturas, mas de ressignificá-las gerando algo novo (e nacional) - um tipo de busca por identidade que remete aos modernistas de 1920 e ao Tropicalismo do final da década de sessenta.
Os diretores brincam de "devorar" a cultura estrangeira até mesmo na estrutura do filme. Temos um primeiro ato lento, arrastado, que beira ao documental - de cara reconhecemos os elementos mais clássicos dos filmes nacionais. Mas, quando são inseridos os personagens estrangeiros, a própria dinâmica do filme muda, o roteiro se torna ágil e cada vez mais "americanizado" - a "dublagem" quase cômica feita para esses personagens, enfatiza ainda mais essa ideia, de maneira bem debochada. Essa estratégia narrativa, aliás, é bem parecida com a que Charlie Kaufman faz em Adaptation - quando o irmão "gêmeo" roteirista encabeça a história, o roteiro sai de sua esfera conceitual e migra para os clichês hollywoodianos.
É verdade que para alguns essa mistura pode parecer confusa e até "sem pé nem cabeça", mas é inegável que Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles trouxeram novos ares para o cinema nacional - que mesmo respirando por aparelhos, sobrevive e resiste como os personagens da cidadezinha. Esse, de fato, não é um filme fácil de digerir. Ele tem o gosto amargo da realidade brasileira ambientada em um futuro não tão distante, mas tem também a esperança de pessoas que entendem que, ao renovar a memória coletiva, nenhum satélite pode tirá-los do mapa. Um povo é feito de suas histórias - e ainda há muito o que ser escrito sobre Bacurau.
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